fonte:
EuroPalestina
(
Tradução Maria Rodrigues, equipa Todos Por Gaza)
Literatura e resistência “
Mais valem os actuais clamores da derrota do que a exultação triunfalista de 1967”
O poeta israelita Aharon Shabtai, famoso especialista em cultura helénica, dá-nos a conhecer as suas reflexões sobre a arte e a política e sobre a influência da ocupação na cultura israelita.
Nesta entrevista conduzida por Nir Nader (publicada em Julho de 2007) Aharon Shabtai considera que “nas actuais circunstâncias de barbárie (…) os escritores são convocados a tomar a palavra, a assumir posições políticas claras, a afirmar uma postura moral e a exercer resistência”.
Nir Nader:
- Como caracteriza a relação entre a actual cultura israelita e a situação de ocupação?
Shabtai:
- Israel é um país cujas opções de mudança se fecham umas atrás das outras. No passado, teve a possibilidade de se tornar um saudável estado-nação, estabelecendo relações com os Palestinianos e com os estados vizinhos. Porém, quanto mais o estado de Israel persiste na ocupação e mais depende da força, tanto mais estreitas se tornam as suas opções políticas. A propaganda utilizada para justificar a violência da ocupação tem um efeito “orweliano” sobre a mentalidade israelita. Daí resulta um enfraquecimento da sensibilidade moral e ética. O discurso político é construído segundo modelos ilusórios, numa espécie de “nova linguagem”, que atinge amplamente a esfera cultural.
Israel está a tornar-se uma colónia sob a égide americana, tal como a antiga Rodésia ou a África do Sul se encontravam outrora face à Grã-Bretanha. Esta colónia é dirigida pelos oligarcas, pelo exército e pelo Shin Beth. O país é uma prisão. Inclui três milhões e meio de habitantes nativos que se encontram estacionados em células territoriais, em campos e em guettos, enquanto que Israel põe em marcha ma política demográfica claramente racista, orientada para a “limpeza” étnica. Esta prisão dispõe de aposentos especiais para os carcereiros israelitas, que vivem em “nichos”, separados das realidades dos nativos. Como na Zona Verde em Bagdad. Aqui como ali, há campos de golf, cafés, residências, organismos culturais para as famílias dos dirigentes. No seio da colónia, os desígnios políticos limitam-se à economia e à segurança, à questão de saber como acumular capital e como eliminar os nativos.
Nir Nader:
- No entanto, na actualidade, Israel não é monolítico. É uma sociedade que se separou dos seus valores sionistas fundamentais, que se distanciou da solidariedade social, que abandonou os seus próprios cidadãos. Isso foi claro na guerra de 2006 e, anteriormente, na eliminação da rede de segurança social.
Shabtai:
- Sim, porque nesta colónia racista as instituições sociais e estatais estão corroídas. Neste actual período de imperialismo global, a política privatiza-se. Os instrumentos de acção política – meios de comunicação de massas, partidos, sindicatos, cuja função é promover a mudança, debelar os males, restaurar a solidariedade, foram esvaziados do seu conteúdo funcional e cedidos a interesses privados. Do mesmo modo, a cultura e o ensino superior são concebidos como coisas susceptíveis de serem privatizadas. É suposto que sejam realidades emancipadas da política, “coisas objectivas”. Ou seja, é suposto que se ajustem ao consenso. Hoje, em Israel, a política e os políticos são anátema. Eis os sintomas de uma sociedade nacionalista de massas, cujos heróis são os oligarcas, como Arcadi Gaydamak, e os generais, como Ariel Sharon ou Ehud Barak.
Os antigos Gregos tinham um termo para designar os cidadãos que apenas se interessavam pelas questões pessoais e punham de lado as questões colectivas: eram os “idiotai”. Esta designação ajusta-se aos israelitas de hoje, pessoas “idiotai” e não cidadãos no verdadeiro sentido da palavra, ou seja, pessoas “politai”. De facto, não se integram nas organizações políticas nem participam nas lutas políticas de alguma importância.
É típico desta postura o que foi escrito por um universitário sobre o meu poema “Não, Sapho”. Acusou-me de ter rebaixado a grande poetisa do amor. Ora Sapho escreveu que o que há de mais belo não reside em batalhões de soldados, nem na cavalaria, nem na marinha de guerra mas na pessoa que amamos. A poetisa opunha-se à mentalidade dominante no seu tempo, ilustrada na poesia de Thirtaios da Lacedemónia. Em contrapartida, oferecia aos cidadãos um “ethos” erótico. No meu poema “Não, Sapho” actualizo o tema e, de forma humorística, proponho uma outra coisa que se adequa a Israel e aos nossos tempos: considerar belas a solidariedade da classe operária e a liberdade. Na Grécia Antiga, o primeiro poema de carácter lírico é de Archilocos e intitula-se “Um certo montanhês”. Nele o poeta conta, sem vergonha, como se desembaraçou do seu escudo em plena batalha, no momento em que se intensificava o combate. É um poema que define a função ética e cívica da poesia. O poeta transgride os valores heróicos dominantes e ilustra o direito ao exercício do seu próprio juizo e à formulação de um novo princípio (“logos”). Ou seja, o direito de recusar uma morte absurda é apresentado como um valor adequado a um cidadão livre.
Contrariamente, hoje em dia em Israel, a sabedoria convencional entende que os elementos da cultura, como poemas, possam existir por si mesmos e para si mesmos, numa esfera à parte, que nada tem a ver com a construção de argumentos e, particularmente, nada tem a ver com declarações políticas. O que é político é tido como vulgar e trivial. A literatura e a cultura nada têm a ver com o “ethos” cívico. É uma cultura de “idiotai”, no seio da qual cada indivíduo apenas se preocupa consigo mesmo e onde todos os problemas caem nas costas do indivíduo, tornando-se assim traumatismos de um ego dilatado e enroscado em si mesmo. A arte privatizada, associando-se à vida dos “idiotai”, torna-se um ramo da psicologia. Também isso se verificou nos Estados Unidos, onde era habitual que a poesia fosse comprometida e militante, particularmente durante a guerra do Vietnam. Em poucos anos, desde que a administração Johnson criou o Fundo Nacional para as Artes, a poesia tornou-se, nos meios universitários, uma disciplina de oficina de escrita.
Também em Israel as oficinas de escrita são encorajadas. Constituem nichos económicos florescentes na terapia pela arte, ajudando na adaptação das pessoas. A psicologia tornou-se uma ideologia. São interiorizados todos os traumatismos de uma sociedade marcada pelo homicídio militar e pela exploração, surgindo como problemas do indivíduo, que se encontra isolado num nacionalismo de massas. Este tipo de problemas é tido como se fosse do foro privado, de ordem individual. O indivíduo tornou-se um paciente. Deste modo, os indivíduos aceitam a sua individualização como um dom. Ficam imersos numa perpétua infância, tal como os Gigantes da Idade da Prata na obra de Hesíodo, em que cada um, “verdadeiro néscio brincando de forma pueril na sua casa, é criado por sua mãe durante cem anos”. A arte como psicoterapia está ao serviço de uma ideologia na qual todos são indivíduos, sem um espaço político (uma “agora”), sem um espaço onde os problemas pessoais, que são políticos por natureza, atinjam a consciência dessa natureza e encontrem as suas verdadeiras soluções. A arte sem espaço político é como pasta de modelagem que se dá a doentes mentais e a crianças – os que não têm responsabilidade em relação ao espaço político são escravos e crianças. Nos nossos dias, a arte e a literatura mantêm em situação de jardim de infância os que não querem, ou não podem, ser adultos.
Nir Nader_
- Todavia, isso parece-me uma generalização. Apesar de tudo, a ocupação é reconhecida como um desafio importante pelo conjunto da corrente dominante israelita, incluindo os escritores institucionais.
Shabtai:
- Você está a referir-se a intelectuais e escritores daquela espécie a que um dos meus amigos, Ninrod Kamer, chama “a esquerda mole”: Amos Oz e David Grossman, por exemplo. No caso destes, quero dizer que foi aplicado o princípio de cooptação.
O poder estabelecido adoptou-os, cooptou-os – foi esse o método. Eles vociferam, no plano geral, contra a ocupação. E essa postura confere-lhes credibilidade quando apoiam o regime em qualquer questão específica de alguma importância. Foi assim que apoiaram os Acordos de Oslo, o logro de Camp David de Julho de 2000, as medidas tomadas contra a Intifada e a segunda guerra do Líbano. Os escritores da “esquerda mole” não dão conteúdo político à literatura, antes pelo contrário: em vez de impulsionar as decisões para a acção, eles sublimam a politica na cultura. A questão da ocupação, nas suas mãos, torna-se objecto de “mastigação” psíquica da bela alma israelita atormentada. Foi a maneira que arranjaram de a tornar um cliché do discurso cultural israelita. Até Ariel Sharon e Ehud Olmert disseram ser contra a ocupação. Isto foi vulgarizado, para se tornar um ramo da cultura, o material de uma interminável auto-flagelação narcísica para filmes, conferências, teses de doutoramento e carreiras universitárias. Deste modo, retiraram a questão da ocupação do domínio da luta, tendo-a relegado para o papel de psicoterapia de jardim de infância. Chegamos ao ponto de considerar a ocupação uma “grafomania”. As pessoas estão saturadas de ouvir falar disso.
Por este motivo, nenhuma literatura importante se desenvolveu a partir dos Acordos de Oslo, apenas palermices medíocres que contribuem para o “filistinismo” da vida social, reciclando a “experiência histórica de Israel” no seu imobilismo.
E isto porque a literatura possui seguramente uma missão ética e política. Política, no sentido grego da Antiguidade Clássica. A pedra de toque da literatura é o nível em que coopera ou não coopera com o regime para forjar um consenso. A cultura é um laboratório ideológico, que recorre a narrativas a que aderimos para criar uma representação da realidade. Ela inventa definições e diferenciações (Judeus/Árabes, por exemplo) que fornecem ao indivíduo uma identidade. O que distingue os grandes escritores e poetas é o facto de criarem uma resistência e de oferecerem alternativas à maneira de ser. Em períodos de urgência, tais escritores ligam-se directamente à política.
Resistir resulta da essência da vida. Cada um sente o peso, a inércia e a força do atrito quando avança ou quando age enquanto indivíduo. Por outro lado, há uma enorme pressão, mais ou menos dissimulada, para nos tornarmos “bons rapazes”, ou seja, para nos limitarmos ao conformismo.
Um verdadeiro poeta tem a coragem e a lucidez de instaurar a resistência na vasta esfera da Ética, precisamente onde o indivíduo é incitado a adaptar-se à norma. Esta provoca constrangimentos nos seus gostos, nos seus valores, na linguagem que usa. Mas o tema da entrevista é uma situação específica. Não estamos nos Países Baixos. Nas circunstâncias actuais de barbárie, que lembram aquelas que outrora prevaleceram na Alemanha, na Rússia, em França e na América, os escritores são convocados a tomar a palavra, a assumir uma postura política clara e moral, a resistir.
Nir Nader:
- Dê-me exemplos de quem assim agiu, em oposição.
Shabtai:
- Sócrates, na Grécia Antiga, levantou-se contra a sociedade do seu tempo, pronto a morrer. Em Atenas, o preceito ético maior era prejudicar o inimigo e fazer bem ao amigo. Sócrates não estava de acordo. Ele dava prioridade ao que era justo. Em conformidade, considerava que mais valia sofrer o mal do que o fazer. Após a queda da democracia ateniense, os ditadores habituaram-se a mandar prender os que eram identificados como seus opositores, ou então os que tinham bens que os ditadores queriam confiscar. Sócrates e quatro outros cidadãos receberam ordem para prender um outro chamado Leão. Ele recusou, pondo a sua vida em risco. Só se salvou devido a uma mudança de regime. Mais tarde, foi acusado de blasfémia e de corromper a juventude, tendo sido condenado à morte. O discurso que pronunciou no seu próprio julgamento, conhecido pela designação de Apologia, é o texto político fundamental da Europa.
A maior parte dos escritores de primeira grandeza foram opositores, num ou noutro sentido. Não é por acaso que mesmo escritores afastados de todo o radicalismo, como Flaubert e Baudelaire, foram levados a julgamento. Existem períodos tranquilos durante os quais a oposição não é manifestada. Mas, em circunstâncias particulares – tais como a opressão, a aniquilação dos direitos humanos, o fascismo, os escritores devem tomar posição.
Todavia, em Israel, como já afirmei, os escritores alinham sem esforço com o regime. Amos Oz, Yehoshuaz Sobol, A. B. Yehoshua e David Grossman apoiaram a guerra do Líbano durante a qual a aviação matou mais de um milhar de civis, destruiu aldeias e arrasou bairros em Beirute. São momentos como este que constituem a pedra de toque do escritor e do artista. Podemos referir numerosos exemplos de grandes escritores, e não necessariamente de esquerda, que se recusaram a colaborar com os respectivos regimes.
Assim foi, no ponto fulminante do fervor patriótico da Áustria, quando Stefan Zweig se opôs à primeira guerra mundial. Abandonou o seu país e declarou a sua solidariedade com o povo francês. Thomas Mann opôs-se aos nazis muito antes de Auschwitz, tendo preferido o exílio a partir de 1933. Depois disso muito falou e escreveu contra os poderes instaurados no seu país. Na Alemanha, os seus livros foram queimados. A sua “Montanha Mágica” mostra como uma sociedade inteira se transformou numa comunidade de doentes, numa clínica, como é o caso de Israel nos nossos dias.
Nir Nader:
- Será que uma cultura israelita hebraica poderá sobreviver longamente numa região que é árabe, uma região tão completamente diferente?
Shabtai:
- Eis o principal problema. A ocupação, o exército e o capitalismo estão a destruir o país, simultaneamente a paisagem física e a paisagem humana, de que fazem parte os Palestinianos, que aqui têm as suas raízes. Para Israel, o exemplo a seguir deveria ser o de países como a Bélgica, a Suiça e o Canadá, Estados que fornecem um quadro no qual grupos diversos podem viver em conjunto.
O monumento mais representativo da actual cultura israelita é o muro da separação. Isto está cravado na consciência nacional e na literatura hebraica. O muro é o ponto de fixação que a literatura recicla incessantemente. Esta literatura não funciona enquanto meio de criar uma oposição, de mudar a vida. De maneira que não há mudança na vida, só no estilo de vida.
Nir Nader:
- Entre as nuvens negras que descreve, poderá haver alguma luz?
Shabtai:
- Se a sociedade possui um instinto de auto-preservação, então ocorrerá uma mudança. Uma revolução. Repare, hoje tudo se acumula contra os jovens. Não têm futuro. Nas recentes manifestações de estudantes em Jerusalém, a juventude começou a reclamar uma revolução, tendo muitas pessoas que passavam na rua aderido às suas reclamações. É um sinal de mudança. Esta chegará, cedo ou tarde. Deste ponto de vista, o insucesso de Israel na segunda guerra do Líbano é também um sinal encorajante. Isto pode parecer bizarro, mas os clamores de derrota que hoje se ouvem, são preferíveis à exultação nacionalista de 1967. O militarismo israelita está votado ao insucesso, numa sociedade em que se agravam a exploração e a pobreza.
A revolta actual não é ainda política, pois a tomada de consciência e a solidariedade continuam limitadas. Existem excepções, como o grupo de jovens poetas que fundaram o jornal Ma’ayan. O seu modo de acção assemelha-se bastante a movimentos artísticos radicais, como o dos dadaístas. Opuseram-se à guerra do Líbano e manifestam consideração tanto pelos Judeus como pelos Árabes. Mas, de momento, a maioria dos jovens não representa qualquer ameaça para o poder estabelecido. O chauvinismo e o ódio aos Árabes continuam a possibilitar a exploração da juventude e dos pobres.
Enquanto escritor, percepciono-me como quem age no interior de um regime. A poesia não é uma correspondência privada. Ela produz-se no seio de um sistema ligado a outros sistemas. Só dessa maneira é que a poesia tem uma função e um lugar no espaço público. No interior dos sistemas político e cultural, está a ser estimulado um debate, está em marcha o pensamento e anima-se uma luta pela mudança e pela renovação. Na situação presente, os sistemas político e cultural não funcionam. A sua vacuidade e a sua trivialidade dissuadem.
Ou somos rapazinhos confinados à clínica ou tornamo-nos dissidentes, activistas actuando nas margens.
O escritor publicou dezoito obras de poesia em hebreu.
As suas traduções de teatro grego para a língua hebraica foram coroadas por numerosos prémios.
Dois dos seus livros foram escritos em língua inglesa:
Love and Others Poems (Nova Iorque: The Sheep Meadow Press, 1997)
J’Accuse (Nova Iorque: New Directions, 2003)
Este último título faz eco da crítica violenta de Zola contra o antisemitismo durante o processo de Dreyfus. São poemas que põem em causa as práticas israelitas durante a ocupação.
Traduções da obra de Shabtai foram publicadas nas principais revistas poéticas em língua inglesa.
Recentemente, participou na “Anthologie Rouge” (Aduma)