Saturday 21 November 2009

A Paz de Obama

fonte:Electronic Intifada

A Paz de Obama


por Joseph Massad


tradução: equipa Todos Por Gaza

Pelas suas guerras contínuas contra os paquistaneses, afegãos e iraquianos, pelo apoio dado ao derrube da democracia nas Honduras, pela a sua cumplicidade com as ditaduras do mundo árabe e muçulmano (que o seu governo financia, arma e treina em novos métodos de tortura), o seu planeamento para uma possível invasão do Irão e pelo seu apoio entusiástico à colónia racista israelita (e às suas guerras e ocupações coloniais contra os palestinianos), o presidente dos Estados Unidos Barack Obama recebeu o Prémio Nobel da "Paz". Tal facto não constitui surpresa alguma, já que Obama faz parte de uma longa lista de destinatários deste simulacro de prémio, reconhecidos pelas suas actividades similarmente "pacíficas". Esta lista inclui terroristas como Menachem Begin, criminosos de guerra como Henry Kissinger, generais da limpeza étnica-colonial como Yitzhak Rabin, ditadores como Anwar Sadat, políticos corruptos, como Yasser Arafat, e presidentes imperialiastas, como Jimmy Carter. A concessão feita a este homem ambicioso cheio de sede de poder é pois um tipo de reconhecimento normal para o Comité do Nobel.

A mais recente forma de Obama procurar a paz foi forçar a corrupta Autoridade Palestiniana a descartar o relatório Goldstone, relatório esse que detalhava os crimes de guerra cometidos por Israel na guerra assassina contra os civis palestinianos na Faixa de Gaza há dez meses. Na verdade, o primeiro presidente negro americano discursando do púlpito da ONU apenas exortou os palestinianos, os países árabes e os muçulmanos a reconhecerem o direito de Israel a ser um "Estado judeu racista.". É impossivel não pensar na reacção dos americanos se os lideres árabes e palestinianos exigissem a Obama e à comunidade Afro-americana o reconhecimento do direito dos E.U. serem um estado branco.

Este é o mesmo Obama, cuja arrogância é de tal ordem, que, quando pronunciou o seu infame discurso no Cairo vários meses atrás, não mencionou o sofrimento das dezenas de milhares de civis árabes mortos nas seis longas guerras e massacres contra eles levantadas por Israel; nem mostrou qualquer tipo de solidariedade com os milhões de refugiados árabes (incluindo um milhão de egípcios durante a „Guerra de Atrito“ por causa dos atentados bárbaros de Israel). Em vez disso, Obama escolheu dar aos árabes uma lição de história judaica europeia e intimou-os a apreciar o Holocausto cometido por cristãos europeus contra os judeus europeus e não a permanente Nakba cometida pelos colonos judeus europeus contra os árabes, proibindo ainda os palestinianos e os outros árabes de tentar destruir as estruturas racistas do estado de Israel ou de tentar acabar com o seu governação racista. Na verdade, Obama ameaçou os árabes que qualquer tentativa de destruir os alicerces racistas em que o Estado judeu assenta seria vista como algo equivalente a um holocausto. Isto leva a pensar se acabar com a segregação nos EUA ou por fim ao apartheid na África do Sul seria de algum modo equivalente a levar a cabo o extermínio dos brancos! Este também é o mesmo Obama que, com intenção de afastar de si as acusações de ser muçulmano, nos disse disse durante a sua campanha eleitoral, que não só era cristão mas também rezava a Jesus todas as noites e que o sangue de Jesus Cristo o redimirá.

Mas de maneira geral, os americanos dizem que a eleição de Obama, mesmo que esta não garanta qualquer mudança na política externa e imperialista dos EUA, foi a melhor coisa que aconteceu para a maioria dos americanos, ou pelo menos para os americanos brancos liberais e todos os americanos de origem africana. Esta conclusão é um grande engano. Na minha opinião. Obama é a pior coisa que aconteceu nos últimos anos aos americanos de origem africana, os quais continuam a enfrentar discriminação pessoal diariamente e a todos os níveis: institucionais, estruturais, económicos, culturais, sociais. O racismo que molda a política interna dos EUA e as causas da pobreza dos americanos de origem africana tem fortes ligacões com o racismo que condiciona as políticas imperiais dos EUA que empobrecem egípcios, palestinianos, hondurenhos, iraquianos e afegãos.

A eleição de Obama foi certamente a melhor coisa para os americanos brancos liberais. A sua consciência pode agora ser apaziguada fingindo que eles são racistas nem a América o é, uma vez que se elegeu um presidente negro. O facto de que os americanos de origem africana serem hoje menos escolarizados e mais pobres do que eram na década de 1960 é indiferente a esta lógica de auto-congratulação. O mesmo se passa com o facto de que há mais homens afro-americanos hoje (em números absolutos e relativos) nas prisões racistas americanas do que havia na África do Sul na altura do apartheid. Quanto às políticas de educação e ao crime racial, estas não são mais do que uma continuação das políticas dos seus antecessores brancos, procurando a corporatização das escolas e das prisões e a liberalização dos sindicatos de professores, no interesse da classe empresarial branca.

Mas Obama é o culminar das ideias brancas liberais entretecidas no início dos anos 70, quando o idioma do racismo foi transformado, como um efeito da cooptação do movimento pelos Direitos Civis, numa linguagem culturalista. Segundo os liberais brancos os negros não eram racialmente inferiores, o"seu" problema foi diagnosticado como sendo de ordem "cultural". O sentimento era que os negros americanos deveriam simplesmente falar e agir como sendo uma classe média branca fantasiada e uma vez eles adoptados esses valores sociais e culturais, eles deixariam de ser alvo de discriminação. Tal atitude iria então quebrar o "ciclo da pobreza". Foi decidido que essa reforma deveria levar a cabo essa transformação. A classe média negra, formada no final do século XIX, na sequência da abolição da escravatura era vista como um modelo a ser imitado, muito embora se tratasse de uma pequena minoria entre os Afro-americanos. De facto, as soluções apresentadas pelos brancos liberais, como por exemplo a „Acção Afirmativa“ (dos quais os maiores destinatários eram e ainda são as mulheres brancas e não os afro-a americanos) quando beneficiaram alguns negros em tudo, fizeram-no beneficiando a já bem estabelecida pequena classe média negra. Foram os membros conservadores desta classe média que, após colher os seus benefícios, se insurgiram contra a „Acção Afirmativa“. Assim, quer as mulheres brancas quer a classe média afro-americana beneficiaram de um programa que pouco melhorou a vida da maior parte dos afro-americanos, vindo estes últimos a serem culpados de receberem beneficios à custa do homem branco - um refrão habitualmente entoado pelos conservadores mas que também foi ouvido na boca de alguns liberais!

Como Derrick Bell eloquentemente demonstrou, a „Acção Afirmativa“ é uma cobertura para um sistema no qual o racismo continua a ser institucionalizado e os afro-americanos continuam a ser culpados por recusar o melhoramento das suas vidas apesar dos alegados esforço titânicos feitos em seu nome. Alguns dos argumentos culturalistas dos liberais brancos centrados na produção, por parte da „Ação Afirmativa“, de negros que se comportavam como brancos e que se juntariam às fileiras dos " hard-working americans", um código racista que se refere às pessoas brancas e que Obama invocou muitas vezes nos seus discursos. A fantasia doss programas de televisão norte-americana no final de 1970 e 1980 como "Different Strokes" e "Webster" pretendia demonstrar que, se as famílias brancas tivessem a oportunidade de criar crianças negras, essas crianças acabariam por se tornar cidadãos modelos, podendo inclusivé crescer até se tornarem um dia presidentes. Foi sempre um problema de cultura, nunca de raça!

Obama, naturalmente, não só foi criado pela sua mãe branca, cristã e pela sua família (algo que ele - e Joe Biden - nunca se cansaram de nos lembrar durante a campanha eleitoral –para fazer esquecer a contaminação muçulmana do lado do pai), como também é filho de pai africano e não de um afro-americano. Faz~e-lo passar como um exemplo do que acontece quando os afro-americanos são criados da maneira certa é o orgulho e alegria dos liberais brancos enamorados da sua própria ideologia culturalista-cum-racista e inebriados por um virulento nacionalismo. A continuação de Obama das guerras imperiais e das agressões dos EUA é a prova que, se se colocar um afro-americano é educado da „maneira correcta no cargo do presiedente, ele irá exercer as suas funções imperiais tão bem como qualquer presidente branco. Ver Obama ganhar o Prémio Nobel da Paz foi, portanto, um ganho importante para os americanos brancos liberais que se podem vangloriar das suas acções. Porque, afinal de contas, produzir uns poucos afro-americanos na forma de Barack Obama pode silenciar quem quer que ainda tenha coragem de criticar coragosos de este sistema vincadamente racista apelidado de "democracia americana", que continua a vitimar a maioria dos afro-americanos e grande parte do Terceiro Mundo.


Joseph Massad é professor associado de Política àrabe contemporânea e de historia intelectual na Universidade de Columbia. Este artigo foi publicado originalment e no Al-Ahram e é novamente publicado com a autorização do autor.

Thursday 19 November 2009

Os jovens palestinianos são alvos fáceis

Os jovens palestinianos são alvos fáceis

Stuart Littlewood


“Se há uma coisa em que os israelitas são fortes, é em declarar guerra a mulheres e criança”

Traduzido para Português por Maria Rodrigues, equipa Todos Por Gaza


No espaço de 8 anos, perto de um milhar de
crianças foram massacradas pelas tropas de
ocupação.


Entre o ano 2000 e o início da guerra relâmpago de Gaza do Inverno passado, na Cisjordânia e na faixa de Gaza, foram mortas 952 crianças palestinianas (números de B´Tselem). Pelo menos 350 outras crianças foram assassinadas no decorrer da Operação Chumbo Endurecido, em consequência de ataques quotidianos. O que faz com que os “corajosos” israelitas devam ter eliminado até hoje cerca de 1400 jovens. Quem saberá quantos ficaram mutilados ou feridos?
“O exército mais moral do mundo” também gosta de fazer guerra aos estudantes das universidades palestinianas. Recentemente, escrevi um artigo sobre Mema, uma universitária finalista, especializada em Inglês. Soldados israelitas sistematicamente atacaram o campo de refugiados de Belém, onde vivia a sua família, saqueando casas e prendendo os seus moradores, em total arbitrariedade. Um por um, foram levando os membros da família de Mema. Primeiro, foi a sua prima e melhor amiga, uma rapariga de 14 anos, que foi abatida por um sniker israelita, quando estava sentada à porta de sua casa, durante um recolher. Depois, os israelitas vieram prender o seu irmão mais velho, um artista, tendo-o mantido encarcerado durante 4 anos. Em seguida, voltaram para pegar um seu irmão mais novo, de 18 anos. Não satisfeitos, voltaram ainda para prender o mais novo de todos, de 16 anos. Mema seguiu os seus estudos universitários nestas duras circunstâncias.
A legislação militarista de Israel considera que os Palestinianos são adultos aos 16 anos, em flagrante violação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que consagra a idade de 18 anos como idade adulta. Bem entendido, enquanto os jovens israelitas são considerados menores até aos 18 anos, os Palestinianos menores são mandados comparecer nos tribunais militares, mesmo quando se trata de assunto do foro cível. Estes tribunais ignoram as leis e convenções internacionais, não existindo portanto nenhuma protecção jurídica para as pessoas em situação de ocupação militar israelita.
Como a detenção é baseada em informações secretas, às quais nem o detido nem o seu advogado têm acesso, é-lhes impossível a preparação de uma defesa adequada. Além disso, os Serviços de segurança encontram sempre um motivo qualquer para manter os detidos encarcerados em nome do “interesse superior da segurança do Estado de Israel”. Apesar de os detidos terem direito a recurso judicial, eles não têm possibilidade de contestar as provas nem os factos dados como provados, pois todas as informações depositadas no tribunal são arquivadas. Bom, basta de falar da justiça israelita!
Face a essa tensão constante, Mema, longe de abandonar os seus estudos, prosseguiu-os com determinação. “O exército mais moral do mundo” podia ter privado os seus irmãos de instrução, mas ela continuaria a bater-se pela sua própria instrução.
Para chegarem à Universidade de Belém, como a qualquer outra, os estudantes têm de se expor ao fogo dos check-points israelitas. “Às vezes, eles pegam nos nossos cartões de identidade e passam bastante tempo a transcrever todos os seus pormenores, fazendo-nos perder tempo, só para nos atrasar” – diz um estudante. Os estudantes são muitas vezes obrigados a descalçar-se, a retirar o cinto ou a despejar o seu saco. “É como num aeroporto”. “Frequentemente, deixam-nos ficar à espera, mais de uma hora, ao sol ou à chuva…” Os soldados chegam até a esgaçar as roupas dos rapazes e a lançar pragas e insultos de carácter sexual às raparigas.
Algumas contam como foram molestadas sexualmente à ida para a universidade e como todo o seu dia era vivido em ansiedade, pensando na volta. Ora estas humilhações permanentes prejudicam a motivação e a concentração nos estudos.
Há 5 anos, os israelitas retiraram à força 4 estudantes da Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, onde estudavam, para os enviarem, ilegalmente, para a faixa de Gaza. Todos eram finalistas, iam terminar os seus cursos no fim do ano escolar. Houve então um coro de protestos por todo o lado, tendo o conselheiro jurídico do exército israelita recebido numerosos faxes e cartas exigindo que os estudantes fossem autorizados a terminar os seus estudos.
“O exército mais moral do mundo” acabou por admitir que os estudantes deviam ser autorizados a voltar à Universidade de Birzeit, mas com a condição de assinarem um documento garantindo que, após terem terminado os seus estudos, voltariam definitivamente para a faixa de Gaza. Isto permitiu revelar, de forma eficaz, a política israelita de impor uma separação total entre a Cisjordânia e a faixa de Gaza, embora internacionalmente sejam reconhecidas como um território integral. Segundo as disposições do direito internacional, todos os indivíduos têm o direito de escolher livremente o seu lugar de residência dentro de um território. Mas desde quando é que Israel se preocupa com o direito internacional? Este regime racista age de modo a que os estudantes da faixa de Gaza não possam aceder às oito universidades palestinianas da Cisjordânia. Em 1999, estudavam em Birzeit 350 estudantes de Gaza; hoje, praticamente não estudam lá nenhuns.
Não foi portanto com grande surpresa que fomos informados pela Universidade de Belém, há dias, que Berlanty Azzam, uma estudante do 4º ano do Curso de Gestão, acabava de ser detida pelas autoridades militares, que tencionavam expulsá-la para Gaza, por “ter tentado terminar os seus estudos na Universidade de Belém”.
Berlanty, um jovem cristã, é originária de Gaza mas vivia na Cisjordânia desde 2005, após ter recebido do exército israelita uma autorização de deslocação de Gaza para a Cisjordânia. Ela também foi privada do seu diploma universitário, à última da hora. Foi presa no check-point deContainer, entre Belém e Ramalá, quando voltava de tratar da manutenção de contrato em Ramalá.
A jovem de 21 anos deveria ter o seu exame final no Natal. A 4 de Novembro passado, levaram-na num jeep militar, algemada e de olhos vendados, de Belém para Gaza, apesar da promessa do departamento do conselheiro jurídico do exército de que ela não seria expulsa antes de o advogado de Gisha (uma ONG israelita militante pela liberdade de circulação dos palestinianos) ter a possibilidade de interpor recurso num tribunal israelita para a fazer voltar aos seus estudos em Belém.
Logo que atravessaram a fronteira, “o exército mais moral do mundo” soltou Berlanty em plena noite, dizendo-lhe “Está em Gaza”.
“Desde 2005, abstive-me de ir visitar a minha família em Gaza, com receio de vir a ser impedida de voltar para Belem e prosseguir os meus estudos” disse Berlanty à organização Gisha, pelo telemóvel, antes de lho terem confiscado. “Agora, justamente a 2 meses de obter o diploma, sou presa e enviada para Gaza, em plena noite, sem meios de concluir os meus estudos”.
A Universidade de Belem quer mobilizar pessoas do mundo inteiro para protestar. Quem contactar, pensei, senão o embaixador palestiniano em Londres, o professor Manual Hassassien, que foi vice-presidente dessa excelente universidade? “Já contactaram o embaixador palestiniano em Londres para uma explicação deste escândalo?” perguntei-lhes pelo correio.
No dia seguinte, à falta de resposta, enviei mensagem: “Há novidade (…) Ela foi levada para Gaza, algemada e olhos vendados. Por favor, diga-me, o que fez a embaixada?” Passaram-se 24 horas e nada: o silêncio era ensurdecedor! Parece que a embaixada descansa muito e que não tem quadros para gerir as crises.
Mandei então uma mensagem ao embaixador israelita, Ron Prosor, pedindo-lhe para investigar o caso. “À primeira vista, disse-lhe, trata-se de um escândalo absurdo. A jovem estudante estava mesmo a acabar o seu curso. Pergunto-me o que o senhor embaixador e o primeiro ministro Netanyahu diriam se os estudos dos vossos filhos ou netos fossem interrompidos desta maneira.”
No dia seguinte, não tendo tido nenhuma resposta, enviei de novo as mesmas informações sobre Berlanty, a quem tinham algemado as mãos e velado os olhos. Passaram mais 24 horas e nada. Silêncio absoluto! Nem mesmo uma indicação de recepção das mensagens por parte do departamento de imprensa de Israel, que habitualmente responde de forma expedita a qualquer coisa, sempre procurando o lado mediático.
Se se tratasse de uma estudante judia, privada do seu diploma universitário e das melhores oportunidades de vida, as embaixadas israelitas em todo o lado teriam imediatamente tomado o caminho da guerra, proferindo acusações de ódio religioso e de antisemitismo. Mas como se trata do Estado de Israel a estragar a vida da jovem cristã, então não tem importância, está tudo bem!

Artigo publicado em Al-Ahram/Weekly On-line
Publicação semanal do 5 ao 11 de Novembro
Traduzido para Francês por JPP
Fonte: Info Palestine

Sunday 15 November 2009

Artigo de Shlomo Sand no Le Monde diplomatique

Shomo Sand é professor de História Contemporânea na Universidade de Tel-Aviv. Em 2007, publicou um livro dedicado à desconstrução da História do povo judeu, intitulado "Comment le peuple juive fut inventé" (titulo da tradução francesa). Este artigo retirado do Le Monde Diplomatique resume as posições do autor.

A complexa gênese do povo judeu

Descobertas arqueológicas e etnográficas recentes revelam: a idéia de que os judeus seriam descendentes diretos de Moisés, Davi e Salomão é uma farsa ideológica. Como tantos outros povos, eles formaram-se num processo histórico rico e contraditório, que envolve múltiplas etnias e não cabe na descrição religiosa e fundamentalista que ainda prevalece

Shlomo Sand

Qualquer israelense sabe que o povo judeu existe desde a entrega da Torá [1]no monte Sinai e se considera seu descendente direto e exclusivo. Todos estão convencidos de que os judeus saíram do Egito e fixaram-se na Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de Davi e Salomão, posteriormente dividido entre Judéia e Israel. E ninguém ignora o fato de que esse povo conheceu o exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século 6 a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.

Foram quase 2 mil anos de errância desde então. A tribulação levou-os ao Iêmen, ao Marrocos, à Espanha, à Alemanha, à Polônia e até aos confins da Rússia. Felizmente, eles sempre conseguiram preservar os laços de sangue entre as comunidades, tão distantes umas das outras, e mantiveram sua unicidade.

As condições para o retorno à antiga pátria amadureceram apenas no final do século 19. O genocídio nazista, porém, impediu que milhões de judeus repovoassem naturalmente Eretz Israel, a terra de Israel, um sonho de quase vinte séculos.

Virgem, a Palestina esperou que seu povo original regressasse para florescer novamente. A região pertencia aos judeus, e não àquela minoria desprovida de história que chegou lá por acaso. Por isso, as guerras realizadas a partir de 1948 pelo povo errante para recuperar a posse de sua terra foram justas. A oposição da população local é que era criminosa.

De onde vem essa interpretação da história judaica, amplamente difundida e resumida acima?

Trata-se de uma obra do século 19, feita por talentosos reconstrutores do passado, cuja imaginação fértil inventou, sobre a base de pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu. Claro, a abundante historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas as concepções essenciais elaboradas nesse período nunca foram questionadas.

Em Israel, há departamentos acadêmicos especiais para o estudo da “história do povo judeu”. Lá prevalecem temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas

Quando apareciam descobertas capazes de contradizer a imagem do passado linear, elas praticamente não tinham eco. Como um maxilar solidamente fechado, o imperativo nacional bloqueava qualquer espécie de contradição ou desvio em relação ao relato dominante. E as instâncias específicas de produção do conhecimento sobre o passado judeu contribuíram muito para essa curiosa paralisia unilateral: em Israel, os departamentos exclusivamente dedicados ao estudo da “história do povo judeu” são bastante distintos daqueles da chamada “história geral”. Nem o debate de caráter jurídico sobre “quem é judeu” preocupou esses historiadores: para eles, é judeu todo descendente do povo forçado ao exílio há 2 mil anos.

Esses pesquisadores “autorizados” tampouco participaram da controvérsia trazida pela revisão histórica do fim dos anos 1980. A maioria dos atores desse debate público veio de outras disciplinas ou de horizontes extra-universitários, inclusive de fora de Israel: foram sociólogos, orientalistas, lingüistas, geógrafos, especialistas em ciência política, pesquisadores em literatura e arqueólogos que formularam novas reflexões sobre o passado judaico e sionista. Dos “departamentos de história judaica” só surgiram rumores temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas.

Ou seja, após 60 anos recém-completos, a historiografia de Israel amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá em curto prazo. Porém, os fatos revelados pelas novas pesquisas colocam para todo historiador honesto questões fundamentais — ainda que surpreendentes, numa primeira abordagem.

Considerar a Bíblia um livro de história é um dos debates. Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost e Léopold Zunz, não encaravam o texto bíblico dessa forma, no começo do século 19. A seus olhos, o Antigo Testamento era um livro de teologia constitutivo das comunidades religiosas judaicas depois da destruição do Primeiro Templo. Foi preciso esperar até 1850 para encontrar historiadores como Heinrich Graetz, que teve uma visão “nacional” da Bíblia. A partir daí, a retirada de Abraão para Canaã, a saída do Egito e até o reinado unificado de Davi e Salomão foram transformados em relatos de um passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não deixaram de reiterar essas “verdades bíblicas”, que se tornaram o alimento cotidiano da educação israelense.

Nos anos 1980, as descobertas arqueológicas abalam os mitos fundadores. Moisés não conduziu à “terra prometida”. Não houve revolta dos escravos egípcios. O reinado suntuoso de Davi e Salomão foi inventado. A “segunda diáspora”, também

Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a terra treme, abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológicas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século 13 antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito, nem tê-los conduzido à “terra prometida” — pelo simples fato de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios! Aliás, não existe nenhum traço de revolta de escravos no reinado dos faraós, nem de uma conquista rápida de Canaã por estrangeiros.

Tampouco há sinal ou lembrança do suntuoso reinado de Davi e Salomão. As descobertas da década passada mostram a existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais potente; e a Judéia, cujos habitantes não sofreram exílio no século 6 a.C. Apenas as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilônia, e foi desse encontro decisivo com os cultos persas que nasceu o monoteísmo judaico.

E o exílio do ano 70 d.C. teria efetivamente acontecido?

Paradoxalmente, esse “evento fundador” da história dos judeus, de onde a “diáspora” tira sua origem, não rendeu sequer um trabalho de pesquisa. E por uma razão bem prosaica: os romanos nunca exilaram povo nenhum em toda a porção oriental do Mediterrâneo. Com exceção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes da Judéia continuaram a viver em suas terras mesmo após a destruição do Segundo Templo.

Uma parte deles se converteu ao cristianismo no século 4, enquanto a maioria aderiu ao Islã, durante a conquista árabe do século 7. E os pensadores sionistas não ignoravam isso: tanto Yitzhak ben Zvi, que seria presidente de Israel, quanto David ben Gurion, fundador do país, escreveram sobre isso até 1929, ano da grande revolta palestina.

Ambos mencionam, em várias ocasiões, o fato de que os camponeses da Palestina eram os descendentes dos habitantes da antiga Judéia [2].

O êxito da religião de Jesus não colocou fim ao judaísmo. Cem anos depois, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar, onde atualmente está o Iêmen. Após o século 7, berberes judaizados participaram da conquista da Península Ibérica

Mas, na falta de um exílio a partir da Palestina romanizada, de onde vieram os judeus que povoaram o perímetro do Mediterrâneo desde a Antigüidade? Por trás da cortina da historiografia nacional, esconde-se uma surpreendente realidade histórica: do levante dos macabeus, no século 2 a.C., à revolta de Bar Kokhba, no século 2 d.C., o judaísmo foi a primeira religião prosélita. Nesse período, a dinastia dos hasmoneus converteu à força os idumeus do sul da Judéia e os itureus da Galiléia, anexando-os ao “povo de Israel”. Partindo desse reino judeu-helenista, o judaísmo se espalhou por todo o Oriente Médio e pelo perímetro mediterrâneo. No primeiro século de nossa era surgiu o reinado judeu de Adiabena, no território do atual Curdistão, e a ele seguiram-se alguns outros com as mesmas características.

Os escritos de Flávio Josefo são apenas um dos testemunhos do ardor prosélito dos judeus: de Horácio a Sêneca, de Juvenal a Tácito, vários escritores latinos expressaram seu temor sobre a prática da conversão, autorizada pela Mixná e pelo Talmude [3].

No começo do século 4, o êxito da religião de Jesus não colocou fim à expansão do judaísmo, mas empurrou seu proselitismo para as margens do mundo cultural cristão. Cem anos depois, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar, onde atualmente está o Iêmen. Seus descendentes mantiveram a fé judaica após a expansão do Islã e preservam-na até os dias de hoje. Da mesma forma, os cronistas árabes nos contam sobre a existência de tribos berberes judaizadas: contra a pressão árabe sobre a África do Norte, no século 7, surgiu a figura lendária da rainha judia Dihya-el-Kahina. Em seguida, esses berberes judaizados participaram da conquista da Península Ibérica e estabeleceram ali os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-arábe.

A conversão em massa mais significativa ocorreu, no entanto, entre o mar Negro e o mar Cáspio, no imenso reino Cazar do século 8. A expansão do judaísmo do Cáucaso até as terras que hoje pertencem à Ucrânia engendrou várias comunidades que seriam expulsas para o Leste europeu pelas invasões mongóis do século 13. Lá, os judeus vindos das regiões eslavas do sul e dos atuais territórios alemães estabeleceram as bases da grande cultura ídiche [4].

Desde os anos 1970, uma sucessão de pesquisas “científicas” israelenses se esforça para demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus do mundo inteiro

Esses relatos sobre as origens plurais dos judeus figuraram, de forma mais ou menos hesitante, na historiografia sionista até o início dos anos 1960. Depois disso, foram progressivamente marginalizados e, por fim, desapareceram totalmente da memória pública israelense. Afinal, os conquistadores de Jerusalém em 1967 deveriam ser os descendentes diretos de seu reinado mítico, e não de guerreiros berberes ou cavaleiros cazares. Com isso, os judeus assumiram a figura de éthnos específico que, depois de 2 mil anos de exílio e errância, voltava para a sua capital.

E os defensores desse relato linear e indivisível não mobilizam apenas o ensino de história: eles convocam igualmente a biologia. Desde os anos 1970, uma sucessão de pesquisas “científicas” israelenses se esforça para demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus do mundo inteiro. A “pesquisa sobre as origens das populações” representa hoje um campo legítimo e popular da biologia molecular, e o cromossomo Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio judia na busca desenfreada pela unicidade do “povo eleito”.

Essa concepção histórica constitui a base da política identitária do estado de Israel e é exatamente seu ponto fraco. Ela se presta efetivamente a uma definição essencialista e etnocentrista do judaísmo, alimentando uma segregação que mantém a distância entre judeus e não-judeus.

Israel, 60 anos depois de sua fundação, não aceita conceber-se como uma república que existe para seus cidadãos. Quase um quarto deles não é considerado judeu e, de acordo com o espírito de suas leis, esse estado não lhes pertence. Ao mesmo tempo, Israel se apresenta como o estado dos judeus do mundo todo, mesmo que não eles não sejam mais refugiados perseguidos, e sim cidadãos com plenos direitos, vivendo como iguais nos países onde residem. Em outras palavras, um etnocentrismo sem fronteiras serve de justificativa para uma severa discriminação ao invocar o mito da nação eterna, reconstituída para se reunir na “terra dos antepassados”.

Escrever uma nova história judaica, para além do prisma sionista, não é tarefa fácil. A luz que se refrata ao passar por esse prisma se transforma, insistentemente, em cores etnocêntricas. Mas, se os judeus sempre formaram comunidades religiosas em diversos lugares e elas foram, com freqüência, constituídas pela conversão, obviamente não existe um éthnos portador de uma mesma origem, de um povo errante que teria se deslocado ao longo de 20 séculos.

Sabemos que o desenvolvimento de toda historiografia — e, de maneira geral, as da modernidade — passa pela invenção do conceito de nação, que ocupou milhões de seres humanos nos séculos 19 e 20.

Recentemente, porém, esses sonhos começaram a ruir. Cada vez mais pesquisadores analisam, dissecam e desconstroem os grandes relatos nacionais e, principalmente, os mitos da origem comum, caros aos cronistas do passado. Certamente os pesadelos identitários de ontem darão espaço, amanhã, a outros sonhos de identidade. Assim como toda personalidade é feita de identidades fluidas e variadas, a história também é uma identidade em movimento.

[1] Texto fundador do judaísmo, a Torá é composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

[2] Cf. David ben Gurion e Yitzhak ben Zvi, Eretz Israel no passado e no presente (1918, em ídiche), Jerusalém, Yitzhak ben Zvi, 1980 (em hebraico), e Yitzhak ben Zvi, Nossa população no país (em hebraico), Varsóvia, O Comitê Executivo da União da Juventude e o Fundo Nacional Judeu, 1929.

[3] A Mixná, considerada como a primeira obra de literatura rabínica, foi concluída no século 2 d.C. O Talmude sintetiza o conjunto dos debates rabínicos referindo-se à lei, aos costumes e à história dos judeus. Há dois Talmudes: o da Palestina, escrito entre os séculos 3 e 5, e o da Babilônia, concluído no fim do século 5.

[4] Falado pelos judeus da Europa oriental, o ídiche é uma língua eslavo-germânica, com palavras vindas do hebraico

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